5.12.09

Memória De Minhas Putas Tristes

Postado por Cristie®


É apenas na aparência que esta inesperada e surpreendente história de amor entre um ancião e uma ninfeta se insere numa tradição da qual fazem parte o Vladimir Nabokov de 'Lolita', o Thomas Mann de 'Marte em Veneza' e o Yasunari Kawabata de 'A casa das belas adormecidas', ainda que este último tenha sido citado na epígrafe de Memória de minhas putas tristes e fornecido o mote a partir do qual o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez pôs fim a um período de dez anos longe dos romances.

Um leitor mais atento vai encontrar aqui as principais referências e motivações desse hino de louvor à vida e, por extensão, ao amor, já que um não existe sem o outro no imaginário do Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Apesar de parecer estranho, uma dessas chaves está no conto de fadas A bela adormecida, que, não por acaso, é citado em um momento crucial dessa narrativa ambientada em uma cidade colombiana imaginária, numa época que de tão remota parece imemorial.

A semelhança com a famosa fábula do escritor francês Charles Perrault fica mais explícita na adolescente, que aqui surge dormindo, como se estivesse à espera do seu príncipe encantado. Mas ela também está presente no velho jornalista, narrador dessas memórias, que vai viver cerca de cem anos de solidão embotado e embrutecido, escrevendo crônicas e resenhas maçantes para um jornal provinciano, dando aulas de gramática para alunos tão sem horizontes quanto ele, e, acima de tudo, perambulando de bordel em bordel, dormindo com mulheres descartáveis.

Só quando acorda ao lado da ainda pura ninfeta Delgadina é que este personagem vai ganhar a humanidade que lhe faltou enquanto fugia do amor como se tivesse atrás de si um dos generais que se revezaram no poder da mítica Colômbia de Gabriel Garcia Márquez. O medo do amor é tão superlativo que o anti-herói dessas memórias vai preterir conviver com a mais terrível ameaça para o macho latino: o fantasma da impotência. E enquanto tivesse forças, resistiria ao poder do amor.

Parte desse medo se deve aos ridículos a que o amor nos expõe, aqui elevado à última potência em cenas como a que o ancião anda numa bicicleta cantando “com ares do grande Caruso”, ou aquela em que destrói um quarto de bordel. por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do nosso, apenas ele e tão somente ele, o amor, nos faz humanos, como desde tempos imemoriais a arte vem tentando provar. Seja nos boleros mais sentimentais, que ressoam nas paixões evocadas pelos grandes mestres da ficção, ou em obras-primas como esta.

“Não devia fazer nada de mau gosto, advertiu a mulher da pousada ao ancião Eguchi. Não devia colocar o dedo na boca da mulher adormecida nem tentar nada parecido.”
Yasunari Kawabata
A casa das belas adormecidas

2 Comentários:

Anônimo disse...

excelente a análise da obra, deu vontade de sair correndo e comprar o livro, ja coloquei na minha listinha...bjs e obrigada Cristie

Cristie® disse...

Olá, Born!
Não por isso, querida! É sempre um prazer disponibilizar excelentes análises como essa, e assim incentivar o gosto pela leitura. Normalmente encontramos pela net ou mesmo nos sites de compra, sinopses e resenhas um tanto quanto vagas, por isso adoro, assim que adquiro a obra, de publicar os textos encontrados nas orelhas.
Beijos prá ti e bom domingo.